domingo, 22 de agosto de 2010

DEFICIÊNCIA AUTORAL DAS ARTES VISUAIS


O direito nunca vai suplantar a criação, pois ele é produto dela.

Vale lembrar ainda que uma Lei para ser concretizar deve ser fruto legislativo, ou seja, passar por uma digestão que muitas das vezes não corresponde ao verdadeiro anseio do segmento jurisdicionado. Por esse motivo é que sem sombra de dúvidas defendo que é muito melhor uma nova Lei de Direitos Autorais para substituir a Lei 9.610/98, que a meu ver, trata-se apenas de uma mera contrafação da Lei de 5988/73 com alguns poucos arremedos para parecer coisa diversa.

Se assim pensarmos, ao invés de 10 anos passados de Lei estamos carregando na verdade 35 anos, o que reforça categoricamente poder dizer que a atual Lei é obsoleta, ainda mais quando pensamos em novas tecnologias e suportes utilizados em prol da criação.

É bem verdade que a Lei em vigência contempla de certo modo conceitos de tratados internacionais dos quais nosso país é signatário, porém poderia ir muito além e ainda trazer inovações.

Como membro efetivo da Câmara Setorial de artes visuais, e representando uma base com anseios próprios e diferenciados nesse projeto mentalizado pelo Ministério da Cultura/Funarte, tive a oportunidade ímpar de ter uma cosmovisão da área de atuação, pois os trabalhos realizados na Câmara e seus grupos chamados transversais fixaram um verdadeiro panorama da cultura e seus segmentos no país, tudo com soluções e diagnósticos que, no caso das artes visuais, jamais os próprios intelectuais da área poderiam chegar em curto espaço de tempo.

Essa participação é que me incutiu um posicionamento diferenciado sobre a gestão cultural e também sobre a própria Lei Autoral que protege o artista e sua criação.

No caso específico de artes visuais, dentre as inovações referentes aos Direitos Autorais, concluiu que a Lei especificamente poderia albergar as seguintes situações:

a) Um tratamento mais específico para o campo das artes visuais.

b) A necessidade de uma regulamentação específica da obra derivada, principalmente daquelas advindas da releitura, colagem e refundição;

c) A necessidade da fixação da prescrição do direito de ação no prazo máximo, em face dos reflexos danosos que uma ação ilícita pode provocar em uma obra.

d) A utilização de critérios jurídicos mais nítidos para a caracterização do plágio, como aplicação da inversão do ônus da prova para beneficiar a parte que possui o registro da obra, dando assim maior relevo à existência de registro prévio.

e) Diante da falta de previsão legislativa do quantum a ser arbitrado a titulo de danos materiais nos mesmos moldes do parágrafo único do artigo 103 da lei 9.610/98, sugerindo para imagens um valor razoável entre 40 e 100 salários mínimos, dependendo da utilização ilícita, sem prejuízo aos danos morais do autor.

f) A previsão automática para que a cessão de direitos autorais retorne patrimonialmente aos familiares do autor de artes visuais falecido, caso não haja previsão específica contratual em contrário.

g) No caso de falecimento, a extensão para familiares do direito irrenunciável e inalienável do autor, de perceber, no mínimo, cinco por cento sobre o aumento do preço eventualmente verificável em cada revenda de obra de arte ou manuscrito, sendo originais, que houver alienado, inclusive às obras de domínio público e/ou tombadas;

h) A criação de critérios da figura do “tombamento de obras de arte visuais”, de forma a preservar divisas e o turismo cultural, dando a preferência de aquisição à União.

i) A necessidade de classificação das imagens de obras que não estejam mais protegidas pela Lei de Direitos Autorais, para livre utilização pela população, em especial na educação e difusão das artes visuais e sua história.

j) Regulamentação das licenças creative commons em lei.

k) A criação de uma instância administrativa especializada para atuar na resolução de conflitos no campo dos Direitos Autorais, como referência externa, sem defender interesses específicos.

l) O retorno do Conselho Nacional de Direito Autoral, com atribuição de fiscalização do Escritório Central de Arrecadação e de fixação do valor de taxas referentes a arrecadação e distribuição de direitos.

Voltando à Lei, recordo que para muitos é mais cômodo mantê-la nos padrões atuais, pois uma mudança poderia prejudicar indelevelmente a situação das áreas que demandam execução, principalmente quando falamos da legião dos órgãos que atuam na gestão coletiva, os quais deveriam sofrer maior regulamentação específica.

Veja-se que a liberdade impingida pela lei sem nenhuma interferência estatal, mesmo que mínima, provoca inúmeras distorções e acaba principalmente dilacerando a função social dos direitos autorais.

Cabe ainda lembrar que a função social da propriedade começou a ser tratada em nossa legislação nos idos da nossa Carta Magna de 1888,  e que nossa lei autoral como já dito vem praticamente de 1973.

E é justamente da necessidade de supressão de lacunas, das quais sempre irão existir, que se faz necessária a criação de um Conselho Nacional com respeitabilidade e credibilidade para suprir inclusive normas em branco, as quais reputo: corpos sem almas.

Prova de que isso pode funcionar é o exemplo do reflexo recente que o próprio Conselho Nacional de Justiça vem causando.

Espelhado nisso, e pelo fato dos artistas/criadores/autores necessitarem de tratamento específico sou favorável a criação de um Conselho Nacional de Direitos Autorais, não àquele conselho político nos moldes que já existiu outrora, mas sim um conselho com papel muito mais definido, independente e atuante, inclusive contendo representantes com notável saber dos diversos segmentos culturais, segmentos culturais não podem ser confundidos em hipótese alguma como órgãos particulares de gestão coletiva, digo isso porque esses é que devem respeitar e serem submissos a força da cultura, do criador e do espectador e não vice-versa.

Lembro ainda, que além da revisão da Lei de Direitos Autorais, inclusive para que sejam efetivamente albergados os direitos que atualmente deixam a desejar para vários segmentos da cultura - a exemplo das artes visuais, artes cênicas, circo, teatro, entre outras -, temos ainda a nossa porta o desafio atual do crescente bloco do MERCOSUL, situação que não deve deixar de ser relevada e da qual devemos dar exemplo aos países irmãos.

Outro desafio importante é o de redesenhar o papel da gestão  coletiva de direitos, pois dita gestão deve ser exercida com discernimento social, papel relevante que só encontrará plenitude por meio da interferência de um Conselho formado não só pelo Estado, mas pelos próprios segmentos de criação cultural até para que não haja distorções grosseiras do tipo cobrar pedágio autoral das quermesses das igrejinhas, festejos das associações de moradores, ou ainda cercear estudantes a terem acesso à cultura em seus livros didáticos.

Mais especificamente quanto às artes visuais, minha área de afinidade, confesso que tenho ressalvas pelo modelo  proposto de gestão coletiva e seu funcionamento, situação unânime dentre os 15 participantes que representam 15 estados da federação na Câmara Setorial de Artes Visuais.

Primeiro porque a Lei 9.610/98 não engloba as criações de imagens em seu artigo 99 – imagino que talvez pelo fato de terem um tratamento diferenciado de execução -, segundo porque a gestão coletiva não se resume a um banco de dados de clientes formados para interposição de ações, principalmente referente a artistas consagrados internacionalmente por meio de convênios, situação que veladamente não passa da chamada captação de clientela tão repudiada pela OAB.

Terceiro ainda por que a dita Associação que se intitula Nacional ante aos artistas visuais carece de regulamentação efetiva e possui salvo engano menos artistas brasileiros inscritos em seu banco de dados - 450 no final do ano passado (http://www.autvis.com.br/noticias.php?noticia=136) do que a própria APAP/PR - Associação Profissional dos Artistas Plásticos do Paraná, da qual faço parte e que estatutariamente além de poder praticar gestão de direitos autorais possui um cadastro que recentemente ultrapassou a 850 artistas plásticos somente no Estado do Paraná.

Lembro ainda que o fato de dita Associação Brasileira dos Direitos de Autores Visuais ter supostas parcerias com outras 33 associações no estrangeiro para defender e arrecadar valores aos artistas alienígenas não a legitima para imperar sozinha sobre o assunto em nosso território.

Por tais razões é que a gestão coletiva das artes visuais deve ser repensada em nosso país, desde a sua regulamentação efetiva até a sua estrutura mínima, lembrando que não seria conveniente jogar fora o esqueleto conquistado aos longos dos anos pelo Escritório Central de Arrecadação, o qual muito após séria reformulação bem poderia dar cabo também de outras áreas da produção autoral que somente a música.

Talvez ainda seja de se ponderar termos um único órgão para todas as áreas estruturado para dar cabo da verdadeira satisfação de sua existência, tudo auditado por um Conselho Nacional Permanente de Direitos Autorais como uma instância técnica com estatuto próprio e diretamente desvinculado de comprometimento governamental, mas com participação deste.

Enfim, se a própria Lei Autoral é inócua em vários aspectos no campo das artes visuais, qualquer discussão sobre um órgão de gestão coletiva para as artes visuais dependerá necessariamente de regulamentação, pois os moldes propostos até então carecem de legalidade e não cumprem o anseio do universo a qual se destina.

Luiz Gustavo Vardânega Vidal Pinto (Vidal) – Artista Visual, Advogado, Sócio do escritório Noronha & Vidal Advogados Associados, Membro da Câmara Setorial de Artes Visuais, Presidente da Comissão de Assuntos Culturais da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná, Diretor jurídico da APAP/PR-Associação Profissional dos Artistas Plásticos do Paraná e colaborador do Fórum das Entidades Culturais de Curitiba.

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